Wagner
Rafael Rodrigues[1]
Mais
uma vez o ano começa. Após muita curtição, regada à cerveja e destilados, as
festas da virada já são lembranças. O primeiro mês do ano marcado pela ressaca
e inúmeras contas a serem quitadas passou com muita rapidez. E o carnaval com
samba e folia trouxe a efêmera alegria qual rosa que floresce pela manhã, mas à
tarde quando cortada morre vicejante. Assim, como diz a sabedoria popular,
“agora o trem anda”.
Nesse sentido, nesse período de
crise que atravessa o país algumas questões apareceram: o quanto de capital não
foi desembolsado para tanta farra? Quando se fala tanto em economizar, porque
se gasta tanto com “circo e pão”? Em outras palavras, qual o pivô de tanto
consumismo? Essas desengonçadas linhas arriscam um palpite sobre qual seja o
fundamento dessas indagações, isto é, aquilo que permeia as mais variadas mentes
e corações: o dinheiro! Para tanto emerge outra pergunta: O que é o dinheiro e
qual o seu papel na vida humana?
Não se trata aqui de exaurir e explorar tudo o
que se sabe sobre o tema, mas enfoca-se tão somente a contribuição de um
pensador, que se debruçou durante toda a sua vida para entender o capital e
compreender sua dinâmica na nascente sociedade capitalista do século XIX.
Quiçá, tal contribuição indique algumas pistas a fim de compreender aspectos
desse consumismo que devora as relações humanas.
O principal teórico sobre o capital
foi o alemão Karl Marx (1818-1883), atualmente odiado por alguns, idealizado
por muitos e compreendido por poucos. Vale ressaltar que em torno de
emblemática figura existem "muitos dejetos tóxicos”, isto é, interpretações
equivocadas que dizem pouco da obra marxiana. Em contrapartida, para colher o
espírito do legado de Marx é preciso “tirar os óculos sujos e limpa-los” para
enxergar o que está no não dito, ou seja, reler a obra marxiana com
mentalidade.
Pois bem, Marx nasceu na Renânia,
região no sul da Alemanha. Na juventude decidiu seguir a carreira do pai
cursando Direito na Universidade de Bonn. Contudo, entregue à boêmia e aos
jograis românticos debanda nos estudos e muda-se para Berlim. Na capital alemã
cursa História e Filosofia, doutorando-se mais tarde na Universidade de Jena.
Devido às dificuldades em lecionar, inicia a carreira de jornalista na Gazeta
Renana. Perseguido parte para França, Bélgica e termina seus dias em Londres,
onde mantinha residência desde 1849.
A obra de Marx se pauta por três
fases: a primeira marcada pela participação na esquerda hegeliana que vai até
1844, outra que retrata seu rompimento com círculo hegeliano e no qual rabisca
seus primeiros esboços econômicos, e, a última marcada pela sua dedicação a
compilação do “O Capital”. A presente reflexão baseia-se em dois textos: “Os
manuscritos econômico-filosóficos” da segunda fase, e, o capítulo I do “O
Capital” intitulado a mercadoria.
O ponto de partida do pensamento
marxiano é o sistema de produção capitalista, analisado, sobretudo nos
manuscritos de 1844. Nesse texto, Marx retrata que o trabalhador ao realizar
seu trabalho aliena-se em quatro dimensões: quanto ao produto do seu trabalho,
isto é, o resultado final de sua produção não lhe pertence, o que lhe cabe é
somente uma quantia em dinheiro correspondente a sua força de trabalho
empregada numa determinada parcela de trabalho. Aliena-se no ato de sua
produção, por exemplo: no filme “Tempos Modernos” Charles Chaplin encena um
trabalhador que de tanto apertar parafusos não consegue parar de exercer a
função.
A
terceira dimensão retrata o alienamento quanto ao seu ser genérico, isto é, o
homem vive para trabalhar e trabalha para viver, não lhe sobra tempo para
cuidar de si, pois enquanto trabalha pensa no descanso, e enquanto descansa
sofre porque precisa voltar a trabalhar, ou seja, o trabalho é um fardo pesado
a ser carregado. E por fim, aliena-se. Quanto aos outros, são companheiros de
trabalho e adversários transformando o chão de fábrica num campo de batalha.
Com razão, Marx aponta:
A efetivação do trabalho tanto aparece como
desefetivação que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome. A
objetivação tanto aparece como perda do objeto que o trabalhador é despojado
dos objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do
trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só
pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias
interrupções. A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento (Entfremdung) que, quanto mais objetos o
trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do
seu produto, do capital. (MARX, 2010, p.80-81)
Assim,
nas reflexões dos “Manuscritos” salta aos olhos que para sobreviver o homem
necessita do trabalho, por isso se sujeita ao jugo daquele que detém o
trabalho, isto é, o capitalista por ter terra,
capital e os meios de produção dita como o trabalho deve ser, sempre em
vista de seu único objetivo, obter lucro. Todavia, para manter-se como
indivíduo o trabalhador consome as mercadorias que produz, fazendo girar a roda
que o oprime.
Nessa
perspectiva, o capítulo primeiro do livro I do “Capital” descreve uma reflexão
interessante em torno da mercadoria, pois é justamente essa ideia que
transparece nos “Manuscritos de 1844”, como o próprio Marx descreve:
O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais
riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O
trabalhador se torna mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria.
Com a valorização do mundo das coisas
(Sachenwelt) aumenta em proporção
direta a desvalorização do mundo dos
homens (Menschenwelt). O trabalho não
produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida que se
produz, de fato, mercadorias em geral. (MARX, 2010, p.80)
Nessa ótica, o que é mercadoria?
Como ela se constituiu como fundamento de uma sociedade capitalista? Por
conseguinte, se apontarão alguns argumentos nessa linha.
Primeiramente, dantes de abordar o
que seja mercadoria Marx faz a distinção entre Valor de Troca e Valor de Uso. Grosso modo valor de uso é o consumo, e, valor de troca é o
suporte que garante as condições necessárias para satisfazer o consumo, ou
seja, o que adianta você querer consumir senão há ninguém para produzir. Assim:
“o valor de troca, ao contrário do valor de uso, não é subjetivo e sim objetivo.
Ele se manifesta objetivamente nas relações sociais, na troca, na compra e
venda dos produtos”. (KONDER, 1999, p.112). E Marx complementa:
O valor de troca aparece inicialmente como a relação
quantitativa a proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por
valores de uso de outro tipo, uma relação que se altera constantemente no tempo
e no espaço. Por isso, o valor de troca parece algo acidental e puramente
relativo, um valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria (valeurintrinsèque); portanto, uma contradictio in adjecto [contradição nos
próprios termos]. (MARX, 2013, p.114).
Desse modo, Marx retrata num segundo
ponto sua análise sobre a forma de valor, que constituiu o pivô da mercadoria.
De acordo com ele antes do advento industrial havia nas relações de trocas
certa linearidade, o que ele chama de forma simples, isto é, um produto era
trocado por outro de forma direta, sem intermediários. Por exemplo, alguém que
produzia trigo trocava com quem produzia arroz, pois ambos tinham necessidade
dos produtos um do outro. Entretanto, quando se tem necessidade de outro
produto que não arroz ou trigo. Como fazer? Nessa questão emblemática Konder
aponta:
A troca só se desenvolveu depois que apareceu o excedente econômico, isto é, depois que
as primeiras comunidades humanas passaram a produzir mais do que os indivíduos
precisavam para seu sustento imediato. No início, os homens trocavam somente o
supérfluo, quando havia supérfluo para trocar. O comércio era uma atividade
esporádica. Depois, quando o excedente econômico passou a ser mais constante, a
troca passou a ser feita com mais frequência e acabou se transformando numa
atividade regular. Surgiu, então, a produção feita diretamente para a troca: em
vez de ser determinada pelo valor de uso, a produção passou cada vez mais
determinada pelo valor de troca. E com o desenvolvimento do comércio, foi
preciso inventar o dinheiro, quer dizer, uma mercadoria que facilitasse a troca
de todas as outras mercadorias. Frequentemente, as pessoas perdem de vista o
fato de que o dinheiro também é uma mercadoria e que ele só manifesta seu valor
quando o equiparamos a outras mercadorias. (KONDER, 1999, p.115).
Destarte, Marx na sua reflexão sobre o valor descreve a forma
equivalente, isto é, trata-se de algo que poderia ser trocado por qualquer
mercadoria correspondendo com a o valor de cada trabalho contido nos diversos
produtos. Assim, o dinheiro assumiu esse papel de ser um valor de troca, uma
mercadoria universal, mas ainda uma mercadoria. Nessa ótica, o renomado
pensador Erich Froom da Escola de Frankfurt ressalta as consequências dessa
reviravolta nas relações de troca: “Consumir é essencialmente satisfazer a
fantasia artificialmente estimulada, o desempenho de uma fantasia alheia ao
nosso ser real e concreto” (FROMM, 1970, p.136). E continua:
O dinheiro representa trabalho e esforço em uma forma
abstrata; não necessariamente o meu trabalho e o meu esforço, posto que posso
tê-lo adquirido por herança, fraude, sorte, ou de muitas outras maneiras.
Porém, ainda que quando adquirido por meu esforço (deixando de lado, no
momento, o fato do meu esforço não poder produzir dinheiro se eu não empregar
homens), eu o adquiri de um modo especial, com uma classe especial de esforço,
corresponde a minhas perícias e capacidades, enquanto, ao gastá-lo, o dinheiro
se transforma em forma abstrata de trabalho e pode ser trocado por qualquer
outra coisa. Se tenho dinheiro, não é necessário nenhum esforço ou interesse de
minha parte para adquirir algo. (FROMM, 1970, p.134).
Assim, o dinheiro tornou-se a
condição da possibilidade da existência humana. É claro que desde tempos
antigos havia a troca por moeda, contudo na sociedade industrial ele tornou-se
a única forma de troca deixando de ser um valor de troca, isto é, suporte para
o consumo, para tornar-se valor de uso, ou seja, o desejo dos homens de cada
vez mais possuir dinheiro para adquirir mercadorias que legitimam a existência,
pois é melhor parecer Ser graças ao ter, do que Ser de fato.
Nesse
ínterim não se levou em conta que o ser humano tornou-se mercadoria, e dentre
essas a mais baixa, consumindo outras tantas mercadorias. Assim, Marx encerra a
reflexão com o famoso conceito de fetiche da mercadoria, isto é, o homem
preocupado tão somente em produzir e consumir mercadorias doou sua existência
para a mercadoria, a qual detém a vida dos indivíduos.
Sendo
assim, essa breve exposição procurou recavar no terreno lodoso da filosofia
marxiana, a fim de suscitar questões sobre o papel do dinheiro na vida humana
atual. Não basta viver com saúde física, precisa-se ter saúde financeira, isso
significa usar o dinheiro e não ele usar você. Tal esboço não é uma apologia
socialista, e muito menos uma crítica azeda ao capitalismo. Hoje em dia o
dinheiro é necessário para reger a vida humana, mas não para escravizar.
Contudo, por outro lado uma sociedade que priva única e exclusivamente pelo
consumo não entendeu e não sabe usar prudentemente o dinheiro, dando margem
para tanta corrupção, que por sua vez acarreta outros tantos problemas.
Nesse
sentido pergunta-se, como realizar-se plenamente tendo como fundamento essa
mentalidade consumista? Qual ética sustenta-se quando a tentação do poder,
prazer e ter proporcionadas pelo dinheiro sussurra aos ouvidos? Como acabar com
a corrupção numa sociedade que idolatra o dinheiro. É por essas e outras que se
percebe o quanto a advertência de Nietzsche faz sentido: “O homem é uma corda
entre um abismo”. Quiçá, essas linhas sejam demasiadamente confusas, mas o fato
é que o homem está mergulhado num rio cheio de dinheiro, porém sua vida não
poderá ser salva mesmo com milhões a sua disposição.
REFERÊNCIAS
FROMM,
Erich. Conceito Marxista do Homem. Trad.
Octavio Alves Velho. 3.ed. Rio de Janeiro. Zahar.
____________.Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 6.ed.
Rio de Janeiro, 1970.
KONDER,
Leandro. A Razão quase enlouquecida. Rio
de Janeiro. Campus, 1991.
_______________.
Marx: Vida e Obra. 7.ed. São Paulo.
Paz e Terra, 1999.
MARX,
Karl. O Capital: Crítica da economia
política. Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle.
São Paulo. Boitempo, 2013.
______________.
Manuscritos econômico-filosóficos. Trad.
Jesus Ranieri. [ 4. reimpr.]. São Paulo. Boitempo, 2010.
[1] Frade franciscano conventual.
Licenciado em Filosofia pela FAE Centro Universitário. Graduando em Teologia na
PUC-SP.
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