Por: Everton Marcos Grison
uma anatomia do abandono
A escrita é um eco que deve
necessariamente ultrapassar o limite da audição. Escrever é um ato de
exorcismo, comportamento um tanto esquizofrênico, uma forma de compreender o
incompreensível e o incompreendido. Ato de rebeldia, manifestação da liberdade,
a escrita trancafia aquilo que eclode da inconformidade, do grito que quer
chamar a atenção para a paralisia. A escrita apresenta as veias abertas do
sofrimento, ao mesmo tempo em que delineia os contornos da maça da esperança. A
escrita é o relacionamento definido, o extravio não reconciliado, as mãos dadas
do casamento entre deus e o diabo.
Escrever é estar diante das
múltiplas faces do abandono: abandonar-se enquanto ser escrevente, estar
abandonado em meio a um mundaréu de palavras e regras gramaticais, abandonar-se
para além do registro escrito, como testemunho sincero da existência, tratar
daquilo que é abandonado, enredar-se através e com o abandono humano. Escrever
é uma anatomia abandonada.
Esta palavra cheia de significados,
respingada de dor e com réstias de esperança aparece magistralmente no livro
recente de Debora Diniz: Cadeia: relatos
sobre mulheres, publicado pela Editora Civilização Brasileira, 223 p., R$:32,00.
A autora é pesquisadora e professora da Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília. Vinculada a Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero,
organização não governamental de pesquisa e ação política em temas difíceis,
tais como aborto, presídios e sexualidade. Acumula prêmios e pesquisas
desenvolvidas no Canadá, nos Estados Unidos, na França, na Holanda, no Japão e
no Reino Unido.
Em seu livro, impossível de ser
classificado pelas categorizações simplistas de gêneros e períodos literários,
lança-se no complexo projeto de dar voz as presas do Presídio Feminino de
Brasília. Entretanto, não é um simples relato, ou o torpe registro de histórias
de mulheres reclusas. Seu texto é ensaio, relato, dor, sofrimento, vida,
abandono. Percebe-se que o texto ganha voz própria e ecoa, fazendo a escritora
soltar e pena, ouvir e observar; o grito do abandono ocupa cada canto de
página.
O
que conto foi o que vi ou ouvi nos meses em que estive no Núcleo de Saúde.
Registrei diálogos e personagens no instante mesmo da escuta – relatos do real
em texto. Fiz sempre uma conversa imaginária intermediada entre a escuta e a
anotação, registrei histórias passadas e conferidas nos documentos do arquivo
da prisão. Nunca estive sozinha com uma presa, por isso meus relatos se
submetem ao texto da realidade: outras testemunhas acompanharam o que conto...
Sei que as histórias aqui narradas não representam a totalidade do presídio.
Nem poderiam. Elas são parciais pelo que consegui ver e ouvir, mas também pelo
que me deixaram saber. Imagino muito mais do que fui capaz de perceber. (p.
208-09)
No texto de Debora Diniz parece que
as presas possuem uma moralidade, isto é, o significado das palavras, o
desenrolar da linguagem é um aspecto fundamental para quem vive reclusa. Entre
significado e significante há um grito forte e determinante sobre a vida e a
existência: muitos conhecem mais o chão que o horizonte.
Quando a palavra é curta a ofensa é
resolvida no braço. Se o braço fraqueja no dentro, o cano e a pólvora superam a
fraqueza física no fora. Presa não leva desaforo para casa, pois a vida é curta
por natureza e a casa inexistente. Ambas se corporificam completamente com o
abandono.
O abandono torna o presídio um
zoológico pela abundância de espécie de animais:
... uns
são gente, outros insetos. As baratas disputam crescimento populacional com as
presas, incontáveis nascem das grades, escondem-se nas roupas, passeiam pelo
corpo. A noite, fazem festa sem medo de corretivo. Os bichos miúdos acomodam-se
no couro e nas roupas, mas gostam mesmo dos buracos...” (p. 146-47).
No livro, Debora Diniz não relata
apenas o que viu e ouviu no interior do Núcleo de Saúde da Penitenciária
Feminina de Brasília. Seu texto é a materialização da dor pelo erro. O
sofrimento torna-se verbo nas entranhas da experiência. O que se tem a fazer
como preceito ético é não julgar.
Mesmo diante da hierarquia e choque
de poder entre os de colete preto e os de jaleco branco, a suspensão do juízo
funciona como imperativo categórico: as presas já foram julgadas. Agora pagam
pelo que fizeram e a reclusão deve ensinar o valor da liberdade.
Personalidades como seu Lenilton,
chefe da saúde no presídio, dona Jamila, a psicóloga e Dra. Paloma, a medica
“generalista” desempenham um papel determinante, contribuindo para que o
próprio abandono não se escandalize com as dobras do desleixo em relação ao
cuidado, e desista de si mesmo. Eles fazem com que o abandono não se abandone.
Para a filosofia, Theodor Adorno (1903-1969)
delegava o trabalho de transmitir a dor através do conceito. A autora realiza a
tarefa. Coloca a filosofia em curso, ao desnudar no “conceito de cadeia”, a
infinidade de sons, cheiros, olhares e dores. É complexo perceber que ela não
contou tudo, pois “não teve acesso” ao subúrbio do “conceito cadeia”, naqueles
lugares em que apenas os de colete preto chegam, e no qual elas, as mulheres
tornadas bicho, habitam como baratas. O que se lê neste livro é a apreensão do
culto sincero da sensibilidade em relação ao Outro.
Um comentário :
A resenha crítica que já li sobre este livro.
Aquele tipo de síntese que eu não consegui textualizar, apenas sentir.
Grata.
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