Lúcifer tradução latina de
Fósforo [“aquele que traz a luz”]
(KURY, 1999, p. 156), foi o primeiro revolucionário no mundo religioso, pois
plantou uma estaca na ordem do tempo, este demônio que a tudo mensura. Abalou o
andar das coisas e salgou as feridas da onipresença e onisciência. Ele, o
desgraçado, este animal selvagem e pestilento, a flor da maldade, instaurou o
caos na existência ordeira e sempre a mesma da tradição divina. Por trazer a
luz recebeu como troca as profundezas do inferno, para afogar-se na sua própria
claridade e dúvida.
André,
nome de origem grega (Andreás),
retirado do elemento andrós, que
significa “homem”, “másculo”, “viril”, também possui presença marcante na
bíblia. É mencionado no Novo Testamento como irmão de São Pedro[1]. Morreu
crucificado em uma cruz em formato de X, chamada de “crux decussata”. Como seu irmão Pedro, não se achava digno de
morrer como Cristo. É visto como aquele que possui ideias originais. André
também é o antropônimo que se apresenta no livro Lavoura Arcaica de Raduan
Nassar, identificando uma das figuras centrais.
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Fonte: Web |
Pouco
se sabe sobre Raduan Nassar. Nascido em Pindorama – SP em 1935 descendendo de
uma família libanesa cursou direito e filosofia na USP. Estreou na literatura
em 1975 com o livro Lavoura Arcaica[2].
Em 1978 publicou a novela Um Copo de
Cólera[3],
composta em 1970. Em 1997 veio a público Menina
a Caminho, uma reunião de contos dos anos 60 e 70, publicados de forma
esparsa. Obra curta, mas de profundidade imensurável, com forte tom poético, de
debate filosófico, político e social. É comumente comparado a Clarice
Linspector e Guimarães Rosa. Tal equiparação é simplista tanto para Raduan,
quanto para Linspector e Guimarães. Um grande autor e uma grande obra não
precisam de identificações com terceiros. Eles são pelo simples fato de
mostrarem-se.
Lavoura Arcaica[4]
recebeu tradução para o inglês, espanhol, alemão e francês, com sucessivas
edições e reimpressões. O livro é classificado como romance pelos requintes de
castração das “escolas literárias” brasileiras. Enquadrar como temático é
bastante simplista, pois sua profundidade linguística e reflexiva é tamanha,
que qualquer interpretação não passa de sopro de voz. A inteligentsia vê nas
linhas de Nassar a presença de Nietzsche, Freud, Lacan, Kafka, Baudelaire, a
Bíblia, o Alcorão e a mitologia. Tudo
isso é pouco. O livro é fruto de anos de trabalho, em uma rotina diária de
fazer e refazer, lapidando com mãos de ourives as letras da existência.
André,
o homem viril e de ideias inovadoras, tem em suas veias o ímpeto febril da
existência que abre os olhos e vê a luz, o diferente, o grotesco. André, como
Lúcifer, abala a ordem patriarcal de uma casa imersa na lei encarnada, na
construção e manutenção cultural da tradição impositiva, dos sermões do pai à
mesa;
... hão de ser esses, no seu fundamento,
os modos da família: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um teto bem
suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera,
é insensato quem não se submete. E o pai à cabeceira fez a pausa de costume,
curta, densa, para que medíssemos em silêncio a majestade rústica da sua
postura. (p. 60).
O
filho-irmão, o sal das feridas da onisciência, é o fruto amadurecido da
impaciência: “a impaciência também tem os
seus direitos” (p. 88). A paciência, virtude transbordando a religiosidade
primordial, sustentada pelo tempo, “...o
demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas” (p. 97), com a sua
forma mais suprema no amor na família, na união que traz o acabamento de todos
os princípios, é questionada pelo possuído que revira o cesto de roupas sujas
da casa; “eu, o epilético, o possuído, o
tomado, eu, o faminto...” (p. 110).
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Fonte: Web |
A
fome que tem por ímpeto quebrar o copo do arcaico, da peste súbita e virulenta
da pureza completa. “Era Ana, era Ana,
Pedro, era Ana a minha fome... era Ana a minha enfermidade, ela a minha
loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio
impertinente dos meus testículos... gritei de boca escancarada, expondo a
textura da minha língua exuberante...” (p. 107).
É
Ana, a irmã, o remédio para sua febre, que lhe causa cólera. E Ana vem do
Hebraico Hannah, que no latim
tornou-se Anna, tida como aquela que
é “graciosa”, “cheia de graça”. No Velho Testamento, Ana é a mãe de Samuel, que
engravidou velha. No Novo Testamento aparece como profetisa que reconheceu o
menino Jesus como o messias. De modo controverso é considerada a mãe da virgem
Maria.
O
possuído sente fome da graça. Tal graça unida ao possuído de impaciência abalam
com uma relação incestuosa, a ordem presente e sustentada pelo patriarca. O
balanço da estrutura é dado à sombra de seus olhos. E para tanto, André quer
ser profeta de sua própria história, vivendo uma religião ligada diretamente à
natureza e a um mundo de pulsões e assepsias com a ordem familiar. A cópula com
Ana é o coroamento de sua liturgia, a postulação do seu marco. Por outro lado,
é abalada pela rejeição posterior da irmã, que não responde aos pedidos e promessas
do irmão, tão imersa que está na contemplação religiosa das contas do terço.
O
descompasso dos dois inverte os polos de tensão, e André que era o transgressor
e exilado voluntário, assume a postura de observador entorpecido. A peste
efetiva instaura-se em Ana, tomada pelas coisas do irmão e pela intensidade da
claridade. Ela usurpa o ritual da dança familiar, ferindo Pedro, o irmão que
descende diretamente da árvore paterna e está à direita do pai nas refeições.
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Fonte: Web |
“Todos os erros humano são impaciência,
uma ruptura precoce do que é metódico, uma aparente implantação daquilo que é
aparente.” “Existem dois pecados capitais, dos quais todos os outros derivam:
impaciência e indolência. Por causa da impaciência os homens foram expulsos do
paraíso, por causa da indolência eles não voltam. Mas talvez só exista um
pecado capital: a impaciência. Por causa da impaciência eles foram expulsos,
por causa dela eles não voltam.” (KAFKA, 2011, afor: 2, 3, p. 189).
A
própria virtude cerrou com punho forte o incomodo da impaciência, o arrobou da
desordem, o corpo nu e escrachado da existência virulenta. É no mesmo corpo
efervescente que encontram morada Deus e o Diabo. Ambos estão a postos para
deflorar sua foice na cabeça de quem lhes cruzar a fronte. O ser é a morada de
ambas as instâncias. O bem e o mal não se separaram, pois tanto um como outro,
são frutos da mesma lavoura arcaica do tempo.
Referências
ABRANCHES, Aluísio. Um copo de
Cólera. Brasil, 1999. (70 min).
CARVALHO, Luiz Fernando. Lavoura
Arcaica. Brasil, 2001. (2:51 min).
KAFKA, Franz. Aforismos. In: KAFKA, Franz. Franz
Kafka Essencial. Tradução, seleção e comentários de Modesto Carone. São Paulo:
Penguin/Companhia, 2011.
KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana.
5ª ed. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 1999.
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3ª ed revista pelo
autor – 29ª reimp. São Paulo; Companhia das Letras; 2014.
__________. Menina a Caminho e outros textos. São Paulo; Companhia das Letras,
1997.
__________. Um copo de Cólera. São Paulo; MEDIAfashion, 2012. (Coleção Folha.
Literatura ibero-americana: v. 11).
Notas:
[1] Pedro:
rocha firme. Apóstolo que negou Cristo por três vezes antes do cantar do galo.
Foi crucificado de cabeça para baixo pois não se achava digno de morrer como o
mestre.
[2]
Possuímos o arquivo em PDF tanto de Lavoura
Arcaica como de Um copo de Cólera.
Aos interessados, basta enviar um e-mail para: reflexaodialogada@yahoo.com.br
solicitando os arquivos.
[3] O livro
também recebeu adaptação cinematográfica, com brilhante atuação de Alexandre
Borges e Júlia Lemmertz.
[4] O livro
também recebeu adaptação cinematográfica, com brilhante atuação de Selton
Mello, interpretando André. O filme encontra-se disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=YkihUlo0A74
(Acesso em 24/06/2014 as 09:21).
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